terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

3. Meg e o adeus


         Meg olha pela janela e vê as nuvens cinzentas, anunciando a chuva rala que começa a cair. Aquele era um dia triste, seus olhos deixavam descer algumas lágrimas compridas que se espatifavam na madeira da janelinha azul.  Quase dez longos anos se passaram desde que se viu sozinha ali, com aquele estranho a olhando na chuva. Quase dez anos de escolhas, palavras, sonhos e amores errados. E aquele estranho, que se tornara tão íntimo e tão seu, estava indo embora de novo, num smoking preto de casamento. Para ela, aquele era um smoking preto de funeral...
         Ela o deixou ir, ou, sem querer, o mandara embora? Tinha dúvidas. Era tão jovem quando agiu como uma tola! Não sabia, na ocasião, o quanto seriam definitivos os resultados de seus impulsos infantis. E lamentava, olhando da janela o Riacho de Poème, esperando que, por milagre, ele aparecesse do outro lado da margem, dando a ela a chance de não ter medo e de, finalmente, vadear  para o outro  lado, agarrado-se em seu terno azul marinho, implorando para que não fosse embora com uma mulher que não fosse ela.
        Meg sai da casa e, lentamente, com seu vestido preto e poído de luto, caminha lentamente até a margem do Riacho, deixando que suas lágrimas caíssem na grama e fertilizassem a terra, onde cresceriam flores roxas de arrependimento. Senta-se à margem, sentindo a dor mais profunda que jamais conhecera. Com uma mão, segurava a margarida seca, que havia buscado em seu livro velho de poesias; com a outra mão, ora massageava o peito que doía, ora esfregava os olhos encharcados, espalhando as lágrimas que se renovavam. Eram movimentos em vão, pois essa era a dor que a acompanhava desde o primeiro olhar que recebeu dele. Era tão forte que não soube o que fazer com tanto sentimento, mas, mesmo optando pelo caminho mais fácil, fugir, ela sabia agora, mais do que nunca, que escolhera o caminho mais difícil, esperando que ele viesse a ela, como muitos fizeram. Mas ele era um oceano negro de mistérios. Orgulhoso, como ela também havia sido.
        Meg revivia em sua mente o momento em que o conheceu, quando ela estava comprometida com outro. Ele, então, lhe disse : "Meg, há outro homem no meu lugar! ", e ela sabia que era verdade. Ainda assim, perdeu o tempo para ir embora com ele, para aquela terra de Ipês. Quando finalmente decidiu ir, ele não a recebera. Seu coração era mágoa e desconfiança. Não suportaria se sentir como segunda opção. Mas ele não enxergara que sempre foi ele o amor de Meg. Ela passou muito tempo apenas esperando uma palavra sua. Os dois foram tensos e impulsivos no amor.  Agora, ela sentia o mesmo que ele sentira: "Há outra no meu lugar". E sentia com toda a certeza de que o lugar de um era o abraço do outro, mas eles se perderam na paixão intensa e na  falta de paciência tão característica de quem ama demais.
          Os dois encontrariam pessoas para amar e serem amados, até seriam felizes, mas nunca esqueceriam um do outro, além de manterem certo contato masoquista, que não conseguiriam evitar.
         A chuva caía fina e, quando Meg se deu conta, a margarida em sua mão havia se espatifado de maneira  irrecuperável, como ela mesma. Ela olha para a ponte e percebe  uma cor diferente, uns riscos roxos na madeira. Corre para perto e vê, escrito na ponte: "Meg, seja feliz...", ela olha mais embaixo e lá está a assinatura dele: "Bernardo". Meg sentiu então uma dor ainda mais aguda e pôs-se a chorar copiosamente, com a cabeça apoiada na madeira da ponte. Suas lágrimas faziam as letras dele sumirem, como se nunca tivessem sido escritas.


Tatiana Tchu

domingo, 3 de fevereiro de 2013

2. Meg e as Margaridas



            Meg abre o olho e pisca duas vezes. Diante dos olhos, o campo, repleto de margaridas, harmonicamente infinito, junto ao céu azul e brilhante e a uma leve brisa gostosa que toca seu rosto. Aquele era o lugar dos seus sonhos. Sempre que fechasse os olhos, conseguia se transportar para seu campo de margaridas, com aquela casinha branca de janelas azuis, simples e perfeita. Mais à frente, um riacho, com uma pontezinha de madeira, que levaria para mais verde, mais infinito e mais cores das flores coloridas. Ela, deitada sob as flores, fechava os olhos novamente e respirava fundo o ar puro do lugar. Abria de novo e sorria para as margaridas, "a flor mais alegre do campo". Estava feliz, com aquela paz levada pela envolvente natureza.
            Ali, poderia desfrutar de bom ar para os pulmões, tranquilidade e gotículas da chuva que viria mais tarde. E ela dançaria debaixo da água que cairia do céu, encharcando o vestido novo, com a alegria dessa sua juventude. Mas não era devido à idade, apenas. Meg era eternamente jovem de espírito, e assim o seria quando adulta também. Havia um frescor em sua pele, um otimismo em seus pensamentos e uma pureza em seu olhar que jamais a deixariam envelhecer.
            Meg tinha 15 anos, sonhos esvoaçantes e margaridas por toda a parte. Ali, poderia ver os peixinhos no Riacho de Poème e passar a vida lendo contos sob a sombra dos Flamboyants de flores bem vermelhas. Atravessando a ponte, havia muitos deles; tantos, que, às vezes, nem se via a grama, pois as flores avermelhavam o solo, misturando-se às amarelas de alguns Ipês. Nada era tão confortante quanto deitar em suas margaridas e ver a paisagens das árvores de longe. Meg desejava mesmo estar ali e simplesmente sentir a presença de si mesma, enquanto fechava novamente os olhos e, sem querer, adormecia vez ou outra, até tendo sonhos curtos, sobre qualquer pétala de flor que conseguiria voar na chuva.
            Ela abre os olhos e vira sua atenção para a casinha. Pensa que está na hora de pintar novamente as janelinhas azuis, mas com um tom mais intenso,"turquesa!", grita sozinha, com a voz que soa como um zumbido naquele cenário de imensidão. E ela se levanta, abruptamente, e corre até a porta da casa, fazendo com que seus cabelos voem no ar e sua pele sinta o vento na contramão. E ela deita na rede, olha tudo ao redor e se levanta novamente. Estava inquieta. Precisava mais uma vez pintar as janelinhas, mas a chuva logo viria. Ela sempre caía no mesmo horário, no fim da tarde. Então, buscou uma tela e tinta guache, começando a pintar cores de maneira disforme, apenas para manter a mente ocupada com elas. Achava todas as cores lindas! Pensava que o pior que lhe poderia acontecer seria perder a visão, pois não poderia ver as cores, seus tons, sobretons e todas as suas nuances. Não pintava para haver sentido, mas para misturá-las. Era um fascínio, uma necessidade de seu espírito.
           Na varanda, olhando a paisagem, começava com o amarelo, depois o vermelho, o rosa, o azul... E a mistura viraria lilás, fúcsia, roxo, laranja e algo acinzentado. Assinou seu apelido e sorriu para o resultado de cores misturadas, sem nenhuma definição de desenho. Sentiu, então, a primeira gota cair em seu braço e escorrer até se desfazer. Mais um sorriso de alegria. Havia chegado a hora. Meg leva rapidamente a tela para o meio do campo de margaridas e deixa que a chuva, agora já em várias gotas grossas, fosse alterando sua pintura e enfraquecendo as cores que pintara. Ela, sentada em frente à tela, sorria e sentia seus cabelos umedecendo, e as gotas escorrerem em seu rosto. Como amava chuvas de verão! Como amava as cores se desfazendo! E a chuva, agora muito forte, leva embora toda a cor de sua tela, deixando simples mancha, como uma sombra de algo que foi cor um dia. Ela ri, ri muito, sozinha, molhada, com o vestido novo colado ao corpo, quando sente a presença de um olhar. Vira-se para trás, e lá está ele, do outro lado do Riacho, com um guarda-chuva preto e roupa azul-marinho, olhando-a com estranheza: o rapaz com quem havia sonhado todas as noites após a chuva. Ela sorri. Ele disfarça. Ele corre para a outra direção. Meg olha sua partida com o coração acelerado e certa seriedade intrigante - momento único vindo dela. Ele vai embora enquanto ela diz, sozinha: "é ele!". Mais um largo sorriso e leva a tela para dentro de casa, correndo. Sempre correndo.


Tatiana Tchu

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

1. Morte de Meg


          Meg  tinha essa alma livre, plenamente presa num corpo adulto cheio de obrigações. Era um grito entalado que sufocava suas vias respiratórias; era um choro que não lhe escorria a face o que a deixava sem vida, com sua  agonizante tosse nervosa; era a vontade de se isolar que se disfarçava no constante sorriso em seu rosto: um sorriso que demonstrava felicidade, mas que dizia desespero. Ela sempre o teve como disfarce. Se desconfiassem dela, aquele sorriso aberto dissiparia qualquer dúvida que recaísse sobre sua cínica alegria. E como era cínica! Assim como palhaços, gente muito alegre convive constantemente com seus cansaços. É realmente exaustivo tentar ser leve e, ao mesmo tempo,  conviver com quem reclame da vida o tempo inteiro. Uma simples cara fechada na condução matinal já a destruía rapidamente. E ela não era diferente dos exaustos felizes: por trás da face alegre, um cansaço que lhe pesava os ombros e  lhe doía as costas. 
              Essa luta com o mundo, refletida em sua voz rouca, pois era na garganta que concentrava e tensionava os dissabores. Estava desistindo de qualquer coisa (quem a olhasse de verdade perceberia a gravidade estampada em sua pele, com a boca seca, prestes a soltar com força o tal grito - e provavelmente era disso que a sua alma precisava). Mas, por hoje, bastaria um abraço e uma palavra (ou várias) de amor; desejava o carinho incessante de uma noite inteira; queria, mais do que nunca, não se sentir só nas preocupações e no anseio de poder ser leve, verdadeiramente. 
         Mas, no fundo, deprimida de novo, incompreendida de novo, deveria se recompor das poucas lágrimas que já lhe chegavam ao pescoço, pois o dia seguinte era mais um que lhe tiraria mais de seu corpo e de sua mente, mais um dia sem fim, desejando  as férias que não viriam ou o bilhete premiado da loteria. Imaginava que um surto repentino sairia dela e que isso até poderia ser evitado, se a olhassem com atenção ou se tomasse aquele leksotan guardado na estante. Se não tivesse obrigações no dia seguinte, já o teria tomado, pensou. E, mais uma vez, sentia-se como se não pudesse tomar simples decisões sobre si. Não podia tomar o remédio,  havia esforços demais  para o  amanhã. E, após pensar isso, mais cansaço, mais dor nos ombros (e sem previsão de massagem!), mais triste se sentia. Havia a sobrecarga de sonhos, de preocupações, de dores e dessa certa solidão. Queria poder dividir com quem lhe desse atenção, mas um abraço compreensivo bastaria. 
              Entretanto, o dia passou e a vontade de sorrir também. Sentia-se como se estivesse  perdendo o talento para ser cínica. Nem que fosse só para si. E ela sonhava com sua alma livre, para respirar o ar puro da serra e ver a beleza do mar. Sem hora para ir embora. Sem sentir que a vida vai passar. Sem medo de não ter a chance de desfrutar o que conquistou, ou voltar a dançar e cantar naquele luau com os amigos,  em volta do fogo. Quando iria poder cantar novamente, com sua voz inteira? Ela pensava e doía o coração... E o som preso de sua voz invadia o desejo de se sentir linda de novo, com a alma livre, respirando pureza.  E talvez fosse melhor não pedir pela atenção de que precisava desesperadamente, ou talvez estivesse cansada, mais uma vez, de tanto esforço desperdiçado. Melhor seria entregar-se ao merecido descanso pelo qual implorava seu corpo. E descansar do cansaço, por mais redundante, repetitivo e enfadonho que seja isto: entregar-se ao que lhe quer, o sono arrebatador. Bem, melhor que não ser desejada por coisa alguma...
               Pelo menos assim poderia ter sonhos cintilantes de princesa, com vestidos de mangas bufantes e maquiagem impecável; e poderia cantar no tom mais agudo que houvesse, enquanto passarinhos tocariam sua pele, com a felicidade estampada no rosto. E talvez, sorrindo, deixasse seu corpo falecer devido ao amor proibido, que a entorpeceria de paixão e desejo ardentes, até que pouco ar lhe sobraria, quando, enfraquecida, com seu último suspiro, escorrer-lhe-ia a última gota do vinho tinto preferido, suave como a rosa vermelha em suas mãos, cujos espinhos furar-lhe-iam a pele, enquanto, finalmente, tentaria gritar, mas, sem forças ou sangue, apenas sussurraria: "EU AMEI..." e ela, inteira, se eternizaria num surpreendente meio sorriso... Para sempre.


Tatiana Tchu